
2010 Um Poço Fitando o Céu
Intervenção - Pça. Buenos Aires - São Paulo - Brasil
Um poço fitando o céu
Este trabalho na Praça Buenos Aires faz parte de uma série que venho realizando nos últimos trinta anos, em lugares públicos, com a proposta de convidar as pessoas à interação e à experiência de abrir e fechar receptáculos diversos, ativando memórias e sensações. Ao apresentar os arquivos interativos em uma das exposições, Katia Canton registrou o que até hoje considero uma síntese de minha proposta: “um grande jogo sobre a memória, as heranças históricas e o sentido das lembranças”.
O público, além de participar ativamente interagindo com gavetas, imagens, palavras e objetos, torna-se co-autor à medida que exerce sua liberdade para manipular, deslocar e recombinar os elementos alterando as possíveis leituras.
Como disse Katia, “o arquivo, com sua promessa sacralizada de ordem, tem seu discurso radicalmente subvertido, transforma-se num campo de transmutação, alterando seus conteúdos que são constantemente rearranjados pelo movimento de acaso das manipulações alheias”.
A poética do trabalho consiste também no brincar com as palavras e abarca as sutilezas coletivas e individuais. Como parte desta experiência, haverá, no dia 19 de setembro, às 11h, uma performance da contadora de histórias Adriana Fortes, da Confraria das Três Águas.
Especialmente nesta exposição, conteúdos e referências no interior e no exterior dos arquivos acionam a “desmaterialização do azul celeste” ou um “devaneio aéreo”, como se vê no livro O ar e os sonhos, de Gaston Bachelard. As imagens e objetos destacam o céu, as nuvens, o vento, as folhas... Tanto no exterior, quanto no interior de cada arquivo.
Entre as frases, versos, fragmentos e palavras, há citações de diversos poetas e escritores. Entre eles, destaca-se o título da exposição “Um poço fitando o céu” como referência a um verso de Fernando Pessoa, aqui adotado como retrato das infinitas possibilidades de contato com este público co-autor.
Nair Kremer
São Paulo, setembro de 2010.
Praça Buenos Aires
Em minha trajetória como artista fiz várias intervenções na natureza. Entre as mais marcantes posso citar uma das primeiras, feita no deserto, em 1973, outra feita há cerca de xxx anos, em uma plantação de bananeiras e em outros espaços bastante amplos que chamo de “natureza em si”.
Ao elaborar um projeto para a Praça Buenos Aires, retomo o tema natureza, mas desta vez, a praça se coloca como um espaço de “natureza inserida no meio urbano”. Por isso, dessa vez, pretendo colocar essa especificidade dual “natureza-urbana” em questão.
Memórias do poço 1 - Eternas paisagens casuais
Aconteceu que, nas últimas semanas, durante meu período de repouso forçado para a recuperação de uma fratura na coluna, eu estava pensando no que desenhar, quando Aron chegou com um catálogo. Os trabalhos eram de um artista israelense do qual eu não tinha notícias há muito tempo – Iedid Rubin. Há cerca de quarenta anos sua proposta artística registra justamente o horizonte de um kibutz – e diante disso, mais uma vez, mesmo parada cuidadosamente em minha cama, embarquei em uma viagem imprevista e notável.
As imagens acionaram uma nostalgia mais do que positiva: começou por eu me lembrar dos nossos passos, eu e meus filhos, ainda pequenos, por aqueles caminhos entre a casa de dormir e o espaço para almoçar... e tantos momentos que são fundamentais para minha historicidade.
Mas o texto de apresentação de Rubin me trouxe ainda mais. Ele comentou algo que também fez parte de minhas inquietações como artista no kibutz. Naquele tempo, recebi a oportunidade de ficar três dias por semana sem fazer os trabalhos cotidianos, para ter tempo de me dedicar a minha própria produção. Lembrei-me de que a situação de “artista” causava um constrangedor isolamento em relação aos haverim – os companheiros de kibutz que não poderiam deixar o trabalho. A solução que intuitivamente eu encontrei para isso, foi a mesma de Rubin: trabalhávamos criando as decorações para as festas – era um jeito de nos aproximar do grupo todo e alimentar o contato e a coletividade que até hoje são tão caros a mim.
Expor no Kibutz também era algo diferente, pois quando o público está inserido também no cotidiano e na vida sensível da artista, a relação com a obra é de uma outra ordem. A realidade desperta leituras diferenciadas – que não necessariamente são elogios – podem ser sustos, surpresas, estranhamentos.
A divagação por tantas vivências me trouxe diante de minhas próprias imagens. Somente agora percebi que após viver tantos anos no Brasil, meu imaginário, recorre àquela terra e àquele tampo quando preciso me expressar em paisagens.
Os desdobramentos desta leitura merecem um capítulo à parte.
Eu me pergunto se uma pessoa pode realmente saber por que faz certas coisas. Falar sobre motivações era muito complicado para mim.
Mas, é importante retomar um detalhe: naquele momento, quando vi as imagens de Iedid Rubin, e as casinhas de Bror Chail pintadas por Portinari, minha busca era conceitual. Eu vinha procurando uma maneira de reunir aquelas paisagens israelenses, tão vívidas em minha memória, à realidade atual em meu trabalho no Grajaú. Havia elementos concretos que aproximavam as paisagens. A busca desencadeou em mim pensamentos ainda inconclusos e com surpresa, hoje me vi mergulhada em novas considerações.
Foi por acaso que durante a visita de minha amiga, Olívia, percebi tudo isso de uma maneira diferenciada. Há duas semanas eu elaborei uma instalação da série dos arquivos na Praça Buenos Aires. O título é Um poço fitando o céu, e minha proposta era destacar a leveza, descendo o céu ao chão. Na verdade, embora eu tenha concebido a obra, até então eu não havia me reconhecido nela. Foi somente ao ver minha amiga brincando com seu guarda-chuva em frente àquele céu que me dei conta do que de fato eu já havia realizado: eu juntei o céu de Israel ao gramado paulistano!
Memórias do poço 2 – A interação e o trabalho em rede.
Entrar em contato com o espectador é também entrar em contato comigo mesma. Convidando pessoas para a montagem e interação com gavetas, amplio o espaço de criação concedido ao acaso. Cada um pode ter suas próprias experiências dentro do trabalho, e mesmo como autora, eu – ao me tornar espectadora e participante que interage com as gavetas – também desperto minhas experiências pessoais. Em 29/09/2010, fui até lá. Levei comigo minha “halutzá” – a pequena figura de mulher que tem estado presente em muitos de meus trabalhos. Ao inseri-la neste novo contexto, com novas leituras e conotações, me veio uma alegria... a criança em mim apareceu! Aí, me dei conta de que já posso responder àquela pergunta: “o que é ser velha?”
Digo que, para mim, a pessoa de 70 anos contém as pessoas que ela foi a vida inteira: uma criança, uma adolescente, uma mulher, uma mãe... Quando uma dessas faces vem à tona, hoje, mais do que nunca, vejo o quanto é importante senti-la e vivenciá-la.” Além disso, o trabalho alimenta outras ideias, outros processos, pois se falo de uma exposição de arquivos em espaço público sei que os participantes virão e serão pessoas essencialmente diferentes entre si – com suas fases, suas histórias, suas experiências.
Eles também estão lá – abrindo e fechando gavetas – e uma proposta como essa já havia sido realizada em outras ocasiões. Porém, a dinâmica específica da instalação Um poço fitando o céu desencadeou reações e atitudes que merecem um registro especial. Construir a memória da obra, neste momento, é também uma experiência múltipla e vívida que alimenta novas reflexões.
Acho que a interatividade não está somente na etapa de exposição. Desde o momento inicial – quando recebi o convite para participar da exposição – o processo de criação mobilizou pessoas em diferentes ações: a seleção dos textos e imagens, a preparação das gavetas, a proposta de uma primeira performance... foram os primeiros passos. E cada um foi puxando outro, formando uma grande rede de ações e pessoas envolvidas.
É possível levantar hipóteses sobre os elementos que propiciaram tudo isso. Um deles é o fato de a obra estar em uma posição “não sacralizada”. Quem chega à Praça Buenos Aires, pode encontrar os arquivos e manuseá-los livremente, sem qualquer restrição. Há quem altere o conteúdo das gavetas, compondo novos significados. Há quem traga um objeto pessoal e o integre à obra, como manifestação de sua singularidade... Enfim, é o inevitável “inacabamento” da obra um dos principais estímulos a participação e reflexão por parte de todas as pessoas que a compõem.
Recentemente, outros artistas se sentiram motivados a integrá-la com novas performances, diferentes daquela apresentada no dia da abertura. Estão entre eles, músicos, dançarinos e dançarinas que encontraram ali mais do que um cenário – um elemento que desencadeou neles uma necessidade de expressão. Eles me fizeram o convite para participar – e é claro que aceitei, pois uma ação alimenta a outra e a obra continuará aberta e convidativa, despertando outras atividades que nós não sabemos aonde poderão chegar.
Ou seja, neste acontecimento passo a espectadora e participante. Eu saio do meu trabalho e entro no trabalho de outros.
O artista opera no universo da incerteza, da instabilidade, da imprecisão e do inacabamento. O que vem acontecendo no trabalho da praça, dadas as características já citadas, pode-se dizer que desperta a construção de novos trabalhos.
Por que as pessoas ao longo deste período vêm tendo vontade de acrescentar algo ao trabalho – ou melhor, ampliá-lo, modificá-lo? Neste percurso, tendências se cruzam com o acidental, criando uma interação, uma interconexão todo o tempo – o trabalho agindo e algo sendo afetado por esta ação. Ele se torna um sistema aberto que interage com o ambiente. O trabalho como uma ação geradora de pensamento relacional – simultaneidade de ações. A criação se alimenta e troca informações com o espaço público que o acolhe.
Nair Kremer
Memory of the work - A well facing the sky 10/6/2010
Interaction and Networking
Getting in contact with the viewer is also a contact with myself. When I invite people to the exhibition setting and ask them to interact with the instalation drawers, I broaden the creation space and grant it to chance. Everyone can have their own experiences within the work, and even as the author, by becoming a spectator and participant who interacts with the drawers, I also awaken my personal experiences.
I went there today and took with me my "halutza" - the little figure of a woman who has been present in many of my works. When I inserted it into this new context, with new readings and connotations, some joy came to me ... as if a child has appeared! Then, I realized that I already can answer that question: "What is to be old?"
I say that for me - a 70 year old person contains all the people she has been all her life: a child, a teenager, a woman, a mother... When one of these faces comes up, nowadays and more than ever, I see how important it is to feel and experience it.
The proposal is to exhibit archives in public space and with different stimulus to interact with the audience that is composed by different people - with their own phases, histories and experiences.
They are also there - opening and closing drawers - and such a proposal had already been made in other occasions. However, the specific dynamics of the installation A well facing the sky triggered reactions and attitudes that deserve a special record. Building the memory of the artwork at this time is also a multiple and vivid experience that fuels new reflections.
I think the interactivity is not only in the exhibition stage. From the initial moment - when I received the invitation to participate in the exhibition - the creation process mobilized people in different actions: the selection of texts and images, the preparation of the drawers, the proposal of the first performance ... they were all first steps. And each of them was pulling the other, forming a large network of actions and involving new people.
It is possible to raise hypotheses about the elements that provided all of this. One of them is the fact that the work is located in a "non-sacralized" position.
Those who arrive at Buenos Aires Square can find the files and handle them freely, without any restrictions. There are also those ones who change the contents of the drawers and compose new meanings. There are those who bring a personal object and integrate it into the work, as a manifestation of their singularity ... In short, it is the inevitable "unfinishment" of the artwork, one of the main stimulus to participation and reflection for all the people that compose it.
Recently, other artists were motivated to integrate it with new performances, different from the ones in the opening day. There are musicians and dancers who have found more than a setting there - an element of expression.


